DENNIS RADÜNZ
CIÊNCIA DE FICÇÃO
salvaguardo no guardado de salvados
um chumaço dos curativos ao contrário
uns tufos de inchaços bem imêmores
os invernos duma lágrima sem farmácia
consequência não me causa mais efeito
(o princípio dessas margens de hipótese)
(o sereno das sirenes sem alarme)
(o espelho meu inteiro no grau máximo)
mas a chuva não me cura as horas mortas
em procuras pelas águas prematuras –
eu dedilho dois tufões ainda filhotes
deixo vago meu lugar para tormentas
SOBREAVISO DOS SOBREVIVIDOS
repousa
a pele provisória
a provisão de esperas
uns nomes devorados
ainda em polpa
respiram
alevinos e nenúfares
as vértebras visíveis
os açúcares salobros
sonados e insalubres
no aguaçal de sal comum
moído e iodado – eu
porque sou inesperado
o futuro me descansa
debaixo da aparência
DESVIO PARA O DILÚVIO
En el centro incólume del aguacero um pájaro cantando
José Kozer
o ar baldio da chuva, às vésperas de abril,
as vértebras vasculha, vibra então as vísceras,
os tímpanos e as têmporas e os hímens do vazio
(PRIMEIRA PROVISÃO)
o nado é urgentíssimo
na travessia do sinal
:
o sol sem serventia – ventanias
se esfoliam no escuro da água falsa
e a cegueira as desossa: lascas
da lua fria nos alvéolos dessa rocha
:
o ar bravio estronda e estira-se o estio
nos rasos do baixio da gávea de vigília:
eu, sem mais nenhum brevê de vida
(NENHUMA PROVISÃO)
o ninho às escondidas
no colo do temporal
GALÍXIA DE BOCAVULÁRIO
“a língua não tem osso”
ou discurso que mais diga,
mas a lábia na blandícia
esbarra em ondas de saliva
me non deves de negar parávoas
oh Lengoa Portoglesa Brasiléria
me non deves de negar parávoas
oh Lengoa Portoglesa Brasilívia
e, então, bafeja e babuja
o sabor bom ainda broto
se, no bojo dessa língua,
desabotoa o beijo e basta
a si, língua de línguas
GHOST-WRITTER
eu, o escritor-fantasma,
no primeiro turno de serviço
desenredo uma resenha:
A literatura é uma das carnações mais finas da volúpia – desperta a libido que repousa, dentro, em estado de latência, ao toque nu de seus fonemas e morfemas, com estratégias de sedução que se avolumam, frase a frase, no interior do ritmo da língua. Literatura é também assédio, sublimação ou possessão carnal, entre outros tantos estados lúbricos do desejo, como quando um texto se insinua numa pulsão erótica que culmina em repentino êxtase. O êxtase do instante de leitura que é (como o é durante o orgasmo o desmembramento de tudo o que em nós é identidade), o lugar erradio em que o leitor se desorbita entre dois seres: o si mesmo e o ser no qual tornou-se, atravessado pelo texto (...)
num segundo turno,
por pura mantença,
prevejo um prefácio:
Toda história é uma véspera da criação do mundo etc.
no terceiro turno, pelo múnus,
reviso um Regimento Interno
e o meu sistema de sentires, de víveres e haveres:
as minas d’água das palavras que dessangram
a coisa escrita
– coisa de matéria infinitesimal,
Desmone, coisa de acaso, Dürffer,
coisa de fisionomia, Dan, coisa
de sombra, Dhani, Daniel, Danton
e então despeço-me de ex eus,
despedidos, das coisas de errância,
Diocleciano, Da Szulh, Dimas,
e eu os remunero com uns manás
de húmus, depois durmo, duro
o infinito de uma frase – e é fato:
no em
e dentro de
e desde a enzima
substâncias levam o meu nome
de agora para a hora azul
da cura
a hora sem nenhuma droga que me desabe o canto
para dentro dessa sáfara ou dos silêncios da safena
a hora extrema em que narcisos migram para o eco
e se enraízam como rosto fundo sobre a água-viva
desperto
na ante-sala do ossuário
(vértebra por vértebra)
adentro
e o que em mim verbera
é esse ofício ilocável de excessivo espectro:
ali: aqui: margino a sós a minha própria ossama