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        Trecho publicado no livro "Poesia contemporânea: reconfigurações do sensível", organizado por Gustavo Silveira Ribeiro, Tiago Guilherme Pinheiro e Eduardo Horta Nassif Veras, com apresentação de Alberto Pucheu (Belo Horizonte: Quixote + Do, 2018), p. 36-55. O texto foi publicado originalmente, em versão reduzida, no número 10 da revista Cão Celeste (Lisboa: Averno, 2016.) 

       

       A PERDA DA TERRA E A POESIA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA

 

        Pádua Fernandes

 

O ensaísta aborda livros recentes dos poetas Angélica Freitas, Annita Costa Malufe, Dennis Radünz, Eduardo Jorge, Fábio Weintraub, Guilherme Gontijo Flores, Josoaldo Lima Rêgo, Leonardo Gandolfi, Marcelo Ariel, Paloma Vidal, Reuben da Rocha e Ricardo Rizzo.   

       (...)  Dennis Radünz, com Ossama – último livro, parte de não menos do que da perda do planeta. O autor explicou o título, um “brasileirismo que significa, literalmente, porção de ossos, como se esses poemas – que versam sobre autoritarismos, burocracias, consumismos e desaparição – tivessem sido escavados no que nos restou da civilização, um museu-mundo”.

       O primeiro poema, “As cidades sedadas (carta de achamento do desastre)”, cita a carta de Pero Vaz de Caminha ao rei português anunciando o que se tornaria o Brasil – estes são o achamento e o desastre... Suas três partes aludem a acidentes: no trânsito; incêndio em edifício; em avião. Radünz faz seguir a esse um poema sobre endereço não incluído no “google street view”. Em vários momentos, temos a marca da perda da terra e do mundo, e esses sem-terra, sem-teto, sem-superfície, esses fora-do-mapa são os que, como a poesia, não têm valor. Para “Os inquilinos”, “a morada, muda a muda, desmorona”. Uma poesia que louvasse os proprietários teria outra abordagem, provavelmente triunfalista.

        Em “Olha-podrida [dos suicidados pelas ditaduras]”, temos os sem-nome, sem-lápide, sem-túmulo, isto é, desprovidos até mesmo dos sete palmos de terra reservados aos mortos. Trata-se dos desaparecidos políticos, que reclamam sua identificação, “todos os dedos decepados/ revolvidos em retalhos / (entre os livros esgotados)/ pedem nomes”.  

 A primeira parte trata de temas sociais, chegando à geopolítica e a este assunto de urgente atualidade, o fim do mundo. O silêncio dos fins de tarde em Brasília revela “áreas de bastilha”. O “diretor-executivo do mercado de futuros” faz “polícias” e “bala de borracha”, e a destruição do Rio Doce pela Samarco e pela Vale (crime ambiental ainda impune) é evocada em “Terrábile [de um neologismo lido em Murilo Mendes]”. Um poema tenta retratar um flash de fratura no genocídio em Ruanda (“A segunda imagem”).

      “Museu-mundo” trata da perda do planeta e do fim do “sapiens”, e começa com a pobre Laika, lançada inapelavelmente ao espaço sideral: “eles não salgaram/ a carne da cadela laika” (quase ouvimos uma balalaica na referência à pobre cachorra soviética): o poema parece imaginar a destruição do mundo pelas águas, e no úmido “museu do homem” imagina estes resíduos da civilização: “o dedo de galileu/ o cérebro de einstein/ o último exemplar de ética a nicômaco”. É interessante o movimento do livro, pois a água que trazia o desastre desde a viagem de Cabral, e que leva a uma radical perda do mundo, e as “umidades do museu do homem” só guardarão resíduos, a água conduz-nos à segunda parte do livro, em que ela está presente, porém como líquidos interiores (linfa, sangue – estendido metaforicamente para a genética), bebidas, com predominância dos temas da esfera privada, que coabita com a constatação de que a poesia perdeu o mundo da mesma forma que “dinheiros fora de circulação”.

    O livro constata a Bastilha, mas não encontrou, nas escavações, nenhum plano de rebelião. A esperança e a experiência foram recortadas pelo tempo, como parece sugerir a “linha do tempo”? Nesse recolhimento, o livro parece ser bem atual e encarnar a dissolução da ação política, bem como as perspectivas de mudança social, que parecem ter a atualidade do fóssil, eis que ela se tornou muito menos provável do que o fim do mundo. (...)            

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