DENNIS RADÜNZ
MANUELA (ilustração de Teresa Siewerdt)
NAUFRAGADOS E NAVEGANTES
Se Noé tivesse tido o dom de prever o futuro, certamente teria naufragado.
Cioran
Manuela desenha o nome de Emanuel na lama, na ribeira, à margem esquerda do rio Itajaí-Açu. O desaparecido vive apenas aqui, num rabisco de lodo – E-M-A-N-U-E-L –, soletrado em massa líquida, como se fosse uma fórmula de substância salina. Manuela. Emanuel. Esse que sumiu no mar, num dia de temporal e ventania, e talvez esteja embaixo do barco, numa bolha de ar, ou num cardume de anchovas, sobrando de si somente a espinha descamada, na água salgada que diluiu em volta de seus ossos tudo o que não fosse exatamente ele – os olhos, pulmões, o pau, nervos e veias –, o embarcado Emanuel Floriano Filho.
Manuela ajoelha na lama e umas pontas de arbusto, de folhas pequenas e duras, vêm unhar suas coxas – treze anos de idade – e o calor úmido da restinga lhe sobe, rasteiro, pelas pernas, desde a planta dos pés descalços.
Ó Nossa Senhora dos Navegantes... protegei em todas as minhas viagens...
O entorno é um silêncio inteiro e o céu é salpicado pelo risco a jato de avião sumindo... No rio, boia um cilindro de alumínio alaranjado, encalhado, com dizeres da Marinha Brasileira. E ela reza só com os lábios: Virgem Maria, Senhora dos Navegantes, minha vida é a travessia do mar furioso.
Manuela aí revolve o lodo, arrepiada do terral – o vento que brisa por todo o estuário – e emborca o 3 x 4 de Emanuel na lama. Rastela, afofa a terra, e enterra a imagem de Emanuel na margem: o sinal-da-cruz e basta. E o sinalizador marítimo, cor de laranja, serve de lápide para a fotografia morta.
A embarcação da minha vida... há de ancorar segura e tranquila... no porto da eternidade.
Ela abandona o velório com andar de garça. Ensaia um passo e rodopia, pondo o terral vestido adentro. Friorenta. Arrepia-se ao toque nu do vento. Ri. Afunda os pés na lama ao seu peso de pena, ou pássaro. Risca no lodo o próprio nome: MANUELA MODELO MANEQUIM. Limpa as unhas e dedilha o cabelo crespo. Toca a pétala do seio e eriça, túmido, o mamilo.
Enrola no pescoço o resto de espinhel – anzóis pendidos numa linha, como se fossem arpões pequenos, numa série de alçapões suspensos, água adentro, para fisgar o cardume que voa mais alto –, se enleia na linha de anzóis desse colar de festa, de pesca, ou contas de novena, sentindo, um pouco, a delícia dolorida que lhe fisga todo o colo. Desfila.
(Dentro, no lenho de sua alma, uma ripa de ipê roxo é cortada, com feitio de coração, e posta num forno longo, onde será cozida até que amacie e vergue, para que se curve e se torne a tábua mais impermeável no casco da embarcação da sua vida).
Um bando de gaivotas mergulha e aterrissa, desde o alto, depois de um voo sinuoso, de bicos recurvados, para aterrar no chão coberto de cadáveres de corvinas, semi-comidas, em bando, gaivotas, essas devoradoras de ovos, mas também de atropelados, de asfixiados e afogados, as gaivotas bonitas, ruidosas, plumagem alva e cauda arredondada, às centenas, como se fosse uma garoa de poeira cósmica caindo às margens do rio em que existe apenas o rio e Manuela – sai fora, sai –, com o colar de anzol, com o seu passo rápido, antes que o pôr do sol chegue ao chão e infiltre no interior de tudo a sua escuridão de concha.
Manuela corre – uma listra de pequenas cicatrizes no entorno da nuca... –, corre, e uma gaivota desce rente, repentina, bem na cara: ela se assusta, fecha os olhos – mas que droga! –, gira rápida no ar seu cordão de espinhos – bruaca! –, e ondeia no espaço o espinhel, como quando via girar no ar uma palha-de-aço em chamas.
Ela se abraça de novo nos anzóis e corre, corre pela margem, corre porque é próprio da idade. E corre também porque já é tarde: o sol irá se por sobre o baldio daqui a pouco, sobre tudo, no terreno que é só os fundos da Indústria de Beneficiamento de Pesca.
Manuela pisoteia monturos de areia, engradados, escamas, lamas, tocos, e atravessa os limites do terreno – no outro lado, na curva do rio, vê um fantasma de navio no cemitério de barcos, o que mais parece uma cadeia, ou caixa quadrada de ferrugem e de ferro, o cargueiro de cereais de nome Aristotle, atracado no vazio, o navio-monstro –, e ora pisa com cuidado, pois pode haver esporões ou espinhas, ou escorpiões em forma de esporões de bagre, de barbatanas duras, e pisa com delicadeza, pois pode haver ainda algum miúdo de coisa bonita: gargantilha, brinco, ou uma moeda, por exemplo.
Se lembra quando minha mãe, que foi com outro, fez a minha festa?
E ela recorda as águas passadas: eram mãos na bacia de peixe, estripando; a água fria; cerveja no gelo, o gelo no tanque; os robalos; o rádio parado às sete em ponto na “Hora do Brasil”; peixe na brasa, ou frito, à espera dos parentes; e Manuela ia descalça no chão de capins e grilos, recém-saída da bacia, um pouco trêmula por sair do banho para a corrente; à espera das meninas das vizinhas; e o pai bebendo, no puxado, na festa da Primeira Comunhão; o pai, bêbado, brigando; e Manuela escondendo, no caixão de bonecas, o espinhel de pesca de seu pai, o embarcado Emanuel, para brincar depois de salva-vidas, como o fio de vida ou de morte, com anzóis ao longo, afogamento ou salvação conforme o destino quisto pelo Deus bondoso, o deus das hóstias que às vezes joga boias na arrebentação – águas passadas, essas, só lembradas de passagem.
Corre. E para. Estaca porque se depara com um esqueleto de passarinho: só cabeça, de bico longo e olhos oblongos, todo osso, caído no mato. Ela se agacha – tadinho, que pena – e acolhe o esqueleto do pássaro (somente um biguá) e o leva ao colo, um mergulhão (como veio morrer longe do seu destino...), o fóssil de biguá que ela brinca de fazer voar e o ciranda entre as mãos, o jogando da canhota à destra e vice-versa. Biguá que um dia voou baixo, em bandos mistos, voando em linha ou em “v”, e agora resta desmembrado, distante de seus pés redondos e natatórios, defuntinho apenas – bem que ele podia não ter desaparecido, fugido, afundado, afogado embaixo da tormenta –, um crânio só.
A embarcação da minha vida... lembro quando papai me deu uma ossada de peixe-voador, não, peixe-elétrico, não sei, preciso comprar um perfume de almíscar, não, preciso é posar, fazer meu book, lembro quando as estrelas-do-mar que levei pra casa começaram a cheirar, duras, com os pés demais que elas têm, preciso é ir morar no lado de lá do rio, o porto, meu book, eu vou é viver agora, não vou ser peixeira, imagina o que vão dizer na escola: Manuela é uma modelo, é manequim... mas meu pai me deu banho quando tive febre, disseram que era hepatite A, o pai me deu banho por um bom tempo, dias, e me disseram que essa água não é nem potável, mas o que é potável eu não sei o que é.
A menina recai num choro torrencial, sentada no chão, e num rompante de raiva pisoteia suas marcas no lodo, pisadas, deixadas pra trás e atravessadas pelo pisar de três pontas das gaivotas: pássaro e passos misturados. Porque Manuela não sabe mais como sair (o rio parado, rio no reponto da maré), toda suja de andar na beira. “Suja de pai e de mãe”, como berrou sua avó. “Vaca...” O choro sai dela como se um barco tivesse sido furado para escoar água de bordo, pouco antes de ir ao fundo por causa do tamanho peso.
Aqui, o rio Itajaí-Açu desce devagar na direção do mar tenebroso e é levado pelo lixo, adoecido, entre bacilos, bactérias e outros bichos, como o corpo de capivara que desce desde o Vale, até a desembocadura. Esse rio que é o limite, crepúsculo dos peixes, asfixiando-os, e é o rio de Manuela, desde que nasceu, há treze anos, na última glaciação.
No nariz, sente uma flor de nojo. Tontura.
Ela arremessa a cabeça do biguá bem ao meio da correnteza, que voa raso e mergulha, atrás do seu último peixe. É chegado o princípio da noite...
De noite, o mar não demora, se aproxima em maresia, rasteiro, conforme o vento – o lampião, no rio, acende o pedaço de água, e as casinhas, clandestinas, são jogadas à margem como se asfixiassem num fundo de cesto: uns casebres pegos nos puçás, semelhando caranguejos. Manuela, ali.
Naquela mesma margem, tempo atrás, o filho do mestre-carpinteiro fisgou-a pela mão até a clareira: a imensa ossatura do barco mal se mostrava na penumbra, meio tomada pela luz barrenta do poste. Manuela pisou o chão de serragem, um pouco assombrada com o esqueleto naval, feito só de troncos de ipê, serrados ou cortados a partir de “riscos”, que são moldes fixos. Um barco de tábuas cozidas, encaixadas ainda moles na curvatura do costado.
Visse, Manuela? Eu é que fazo esse pesquêro...
Parece mais um monstro meio comido... – e o silêncio foi crescendo na concha dos ouvidos. O vestido de Manuela era um só traje de calafrios, debaixo do colar de anzóis, batido pelo vento. O filho do mestre a vigiava, de soslaio, olhos fincados no volume dos seios. Uns nacos de lama nas coxas de ambos, manchadas pelo respingo que subiu do chão, com cheiro ainda de chuva e diesel.
O filho do mestre cantarola:
Ô Mãe Maria, cadê Pai João?
Virou a canoa no mar do fundão.
A canoa virou, tornou a virar
de boca pra baixo, de fundo pro ar.
A lágrima jorrou dos dois, dois filhos de naufragados. Manuela o beijou de súbito, para que calasse, e o menino passarinhou de susto, jogado na arrebentação.
Mas uma noite, e outra, e muitas se passaram sobre o rio: Se lembra? O pai sumiu faz cinco meses. Era num desses bichos que ele era embarcado.
A noite imensa sai duma noite menor e Manuela ainda está ali, tão de si desistida, na margem esquerda do Itajaí, sozinha, olhando estrelas, três-marias, com o estômago doendo, socado, batido por dentro. Talvez devesse comer um ingá. Ou voltar, talvez, à casa d’avó – “Toma banho, sua! Tem água na bacia, quente. Lava bem ‘as parte’! Tu sozinha sabe...” – e pisar aquele mesmo rio uma segunda vez, mais cetácea, sem brigar em casa, ao invés de ficar aqui (louca de andar sozinha essas horas pela beira, lugar só da ave bacurau e de bêbados e balseiros).
Um pouco além, no mar, Emanuel Floriano Filho teve o seu batismo de barco, puxado pelos cabos até as profundezas, já descarnado, correndo nos trilhos da morte para tocar o fundo do vazio, o fosso, e viver nos ossos o destino de dilúvio que sobrevêm a todos, quando é a água do passamento, líquida e certa, que afoga, ou apenas devolve à água o corpo que era dois terços água.
Madrugada. Manhã cedo.
Deitada na pedra do molhe que corta as ondas e avança, pedregoso, pelo mar, Manuela acorda em sobressalto, espantada com o flapear repentino de uma gaivota. O sol nascente, a sombra do farol, o barulho de turbina. Ela febricita. Com mãos em concha, mira a linha do horizonte - tão azul! - e sente a dor estranha, membranosa, como se um bando de gaivotas saísse de dentro dela, deixando para trás, depois de nidificarem, somente o ovo do vazio crescente. O coração acelera. A pulsação, também. E a esperança... Sente a dor agudíssima, como se toda a membrana da sua vida se rompesse.
Manuela leva ao rosto o seu rosário de anzóis. O marulhar das ondas se aninha no fundo falso dos ouvidos, enquanto Manuela entoa, quase em silêncio, uma cantoria de notas agudas e sem palavras – o som que vai se deitar no íntimo, na placenta, atravessando fluídos, misturando-se com a batida cardíaca, na torrente sanguínea, na bolsa amniótica, o som que atravessa as paredes abdominais, o som da voz de mãe, maior que o mar, vindo do além, extra útero, som que faz com que, num sobressalto, se retorça, revire cabeça e tronco, o feto, desesperado de se lançar ao cordão umbilical como se fosse o espinhel de salvamento.
A menina senta na rocha mais íngreme do molhe, batida pelas ondas, e reza, e reza, como se rogasse a Iemanjá: Vem logo, Emanuel, volta logo... volta, pai, vem cuidar do nosso filho... Dentro, o embrião fechou os olhos, já do tamanho de olhos na idade adulta.
(2004)
Aristotle, cargueiro de cereais no cemitério de barcos na foz do rio
Itajaí-açu (2003). Foto de Teresa Siewerdt.
Cargueiros no cemitério de barcos (2003). Foto de Teresa Siewerdt.